Os papa-capins

3 \03\-03:00 agosto \03\-03:00 2017 at 10:23 Deixe um comentário

 

Há muito quero falar desse assunto, ainda não sei se vou abordá-lo de forma correta, mas não dá mais para esperar. Meus dedos coçam a cada vez que vejo passar alguém com um papa-capim encerrado numa gaiola coberta com um pano branco ou canários a pipilar em gaiolas penduradas nas paredes.

É uma maldade, eu acho. Além de presa, sem poder voar, sem liberdade, a pobre ave é privada da visão do ambiente que a cerca. Talvez, comenta um conhecido, seja para evitar que ela se desespere e se jogue contra as varetas de sua prisão na busca de bater as asinhas e pousar num dos galhos das árvores para sentir o frescor de sua sombra, o suave farfalhar das folhas, o estimulante perfume das flores, o contato com outros seres voadores como borboletas, mangangás, vespas e abelhas e outras espécies de pássaros.

Meu pai gostava de passarinhos em gaiolas, eu não. Admito, no máximo, os nascidos em cativeiro, como canários e periquitos australianos. Soltos não saberiam como fazer para se alimentar, seriam presas fáceis de outros caçadores. Me afirma outro amigo que assim preservam a raça. Qual! Como preservam, se eles não podem se reproduzir, e se pudessem, como os canários, estariam criando novos prisioneiros?

Criadores se especializam na reprodução das aves para venda. Curiós, por exemplo, valem muito dinheiro. E traficantes de pássaros se arriscam em matas inóspitas para arrancar filhotes de seus ninhos. Crueldade demais. Os sabiás da praia do Açu se acabaram porque os caçadores vigiavam o ninho para roubar filhotes do único casal que havia sobrado de anos de perseguição implacável. Um dia o casal morreu e a espécie se extinguiu na região. Em Rio das Ostras, no entorno da lagoa de Iriri, os sabiás vivem soltos, ciscando a areia. É bonito de se ver.

Os pobres papa-capins são presos por crimes que não cometeram. Já indaguei de um orgulhoso possuidor de um desses cantadores da natureza como se sentiriam caso fossem presos sem culpa. Me respondeu com um sorriso amarelo, sem graça, dizendo não achar nada demais prender o bichinho e muito pelo contrário, se elogiar por lhe fornecer alpiste e água limpa, como se ele não encontrasse isso na natureza.

Sou contra esses aprisionamentos. Sou contra jardins zoológicos, sou contra animais treinados para fazer gracinhas na base de pancadas ou privação de petiscos. Certa vez, acho que foi nos Estados Unidos, puseram numa jaula de um jardim zoológico uma família de seres humanos, um casal e seus filhos. Uma experiência cruel e não durou muito, porque os prisioneiros reclamaram. Aqui, pelo menos, proibiu-se a exibição de feras e outros animais nos circos.

Os pássaros não sabem reclamar. Ou sabem e seu belo canto, se traduzido para a linguagem humana, seja uma ladainha de reclamações e de lamentos pela liberdade perdida. E a liberdade é um bem precioso demais para ser tolhida. A liberdade é tão importante que fez parte dos motivos para a revolução francesa no século 18 e faz parte da bandeira do estado de Minas Gerais. A liberdade é um bem precioso. Por ela lutaram os escravos no século XIX e presos se arriscam ao fugir de cadeias.

Aos domingos, no Ginásio de Esportes, dezenas de homens livres levam seus presos para participar de um concurso de cantos. Há prêmios para os vencedores do torneio. Quanto mais o pássaro cantar, mais ganha prêmio. E se esses cantos forem lamentos desesperados? Talvez no futuro, com o desenvolvimento de pesquisas e de decifradores de linguagens de animais se consiga entender o que cantam os papa-capins e outros pássaros cativos. Muitos donos de arrependerão de tê-los mantido presos, outros não se importarão. Continuarão a levá-los para torneios ou simplesmente para exibi-los e não se importarão de carregá-los pelas ruas, a pé, de bicicleta e outros meios de transporte, em suas gaiolas cobertas, num doloroso e ridículo desfile de insensatez e inconsciência, como os antigos senhores faziam com seus escravos.

RDO,abril.16

 

 

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